Identidade de gênero e Educação: pela afirmação da diversidade de existências

“A primeira lembrança que me vem logo à mente é de quando eu estava na alfabetização, com cinco ou seis anos de idade. Eram duas capas de prova com o tema junino: uma com o desenho de uma fogueira, bandeirinhas e um bonequinho vestido de matutinho e outra com a fogueira, bandeirinhas e uma bonequinha com vestes de matutinha. A primeira versão era entregue aos meninos e a segunda às meninas da sala de aula. Eu chorava porque pedia a das meninas mas a professora não me dava, me via chorando e achava que era birra minha, ela não tinha a compreensão nem capacitação profissional na época para poder lidar com aquela situação, sabe? ” O relato da memória infantil da manicure Alessya Rodrigues, a Leka, mulher trans, moradora do bairro do Cabanga, centro do Recife, hoje com 32 anos, diz respeito à uma de muitas de suas experiências que ficaram cristalizadas na sua trajetória estudantil. Assim como Leka, muitas outras crianças e adolescentes atravessaram ou atravessam situações parecidas no ambiente escolar. Imediatamente uma série de questionamentos, já diversamente amplificados na obra da pensadora Judth Butler, tais como: “A quem pertence o status de “humano”? Quais violências são percebidas?” vão coabitar as discussões, necessárias e urgentes, sobre identidades de gênero também no campo educacional.

Recentemente dois episódios envolvendo unidades escolares e LGBTfobia foram amplamente discutidos, tanto nas esferas virtuais quanto nas instâncias de direito e justiça. O primeiro, em 17 de maio deste ano, trata de um vídeo produzido e veiculado pela deputada estadual Clarissa Tercio (PSC-PE). Na mídia, a parlamentar, de dentro da escola Estadual Nelson Chaves, em Camaragibe, criticava e ameaçava, em tom beligerante, a gestão e profissionais da unidade por utilizarem linguagem neutra em uma faixa que trazia a seguinte frase : “Bem vindes”. Logo após a propagação do vídeo, defensoras e defensores de direitos humanos, sociedade civil e gestões públicas se colocaram em relação ao caso. O Centro Dom Helder Camara de Estudos e Ação Social – Cendhec, através de nota de repúdio, se posicionou: “A atitude da Deputada, enquanto agente público é inaceitável e não deve ficar impune. Exigimos medidas cabíveis e urgentes ao Ministério Público, Comissão de Ética Parlamentar da Assembleia Legislativa de Pernambuco, Secretaria de Educação de Pernambuco e todas as instâncias competentes, para que encaminhem adequadamente o fato registrado”. A Secretaria de Educação de Pernambuco – SEE também se colocou sobre os atos da parlamentar: “A SEE enfatiza que repudia todo e qualquer ato de discriminação, preza pela liberdade de cada indivíduo e reafirma o compromisso com a formação cidadã, ética, inclusiva e plural”.

Exatamente um mês e dez dias depois, a escola da rede particular de ensino, Ecco Prime International Christian School, também situada em Camaragibe, bairro de Aldeia, divulgou em seu Instagram um post com críticas ao tema diversidade de gênero trazido em uma campanha da rede de fast food Burger King. No post, com um carrossel de 10 cards, intitulado “Nossas crianças estão sob ataque” a escola acusa a rede de fast food de estar promovendo o que chama de ‘ideologia de gênero’ e propõe cinco passos para as famílias “se protegerem” do tal “ataque”, entre eles , e sempre no modo verbal imperativo: “Leia a Bíblia com seu filho”, noutro: “Faça culto doméstico em casa”. A escola aproveita ainda para divulgar, no texto do post, a criação do Centro de Treinamento de Pais Cristãos, segundo a instituição: “com intuito de nos armarmos contra estas (referindo-se à campanha da lanchonete) e outras setas inflamadas do inimigo”. Também publiciza um evento pago que, de acordo com informações do texto, acontecerá em setembro deste ano “de forma totalmente presencial” com a participação do pastor Tedd Tripp e sua mulher, Margy Tripp.

Tedd, 75, é um pastor norte americano da Grace Fellowship Church, em Hazleton, Pensilvânia, autor de livros sobre crianças e adolescentes, a exemplos dos títulos “Instructing a Child`s Heart” (Instruindo o coração da Criança) e “Shepherding a Child’s Heart” ( Pastorando o coração da Criança). O religioso já esteve no Brasil, em 2010, durante um evento em Águas de Lindóia, SP. Na ocasião, durante a palestra afirmou: “Precisamos dirigir nossas crianças. Isso aqui descreve um relacionamento de autoridade. Nós somos pessoas que são chamadas para comandar nossas famílias. Deus tem nos dado autoridade para assim agir”. Defendeu ainda que “ouvir o pai é o meio pelo qual o filho ou a filha pode adquirir sabedoria e aprende o temor do senhor” e mais à frente acrescenta sobre o papel masculino no “treinamento” das filhas e filhos: “Certamente você irá usar os talentos da sua esposa, mas você é o responsável. Não estou sugerindo que nossas esposas não sejam capazes. Mas nós, como homens, temos recebido de Deus as qualidades e a obrigação de cumprir essa tarefa”. Durante quase uma hora de palestra, o pastor menciona, durante sua exposição sobre o que seria uma proposição “educativa” para crianças e adolescentes, as palavras “pai” (figura paterna): 18 vezes, “dirigir”:17 vezes, “treinar” e “temor”:10 vezes cada. As palavras “mãe”(figura materna) e “amor” foram proferidas 5 e 4 vezes respectivamente. As palavras “igualdade” e ou “diversidade” não foram mencionadas durante a fala.

A postagem da escola Ecco Prime International Christian School, assim como o vídeo da parlamentar Clarissa Tercio, também gerou repúdio e acalorou o debate sobre o tema identidades de gênero na educação, foram registradas uma média de 11 denúncias para as ouvidorias do Ministério Público e Secretaria de Educação de Pernambuco contra as atitudes LGBTfóbicas da instituição de ensino. A Chefe da Unidade de Educação para as Relações de Gênero e Sexualidades (UNERGS) da Gerência de Educação Inclusiva e Direitos Humanos (GEIDH) da Secretaria de Educação do Estado, Dayanna Louse, historiadora, bacharela em Serviço Social, mestra em educação pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e doutoranda em educação pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), falou sobre a importância da inclusão do tema identidade de gênero nas escolas: “É impossível pensarmos em garantia à educação, que é um direito constitucional e um dever do Estado, sem trazer o tema identidade de gênero para o ambiente escolar. Porque qualquer forma de discriminação é um elemento que vai incidir diretamente no processo de evasão escolar, então é fundamental pensarmos políticas públicas para que estudantes possam ter um processo educacional mais digno, que possam encontrar na escola um espaço de fortalecimento identitário” e completa: “Pensar a população LGBT, a exemplo do uso do nome social respeitado, do uso do banheiro também reconhecido, numa perspectiva de inclusão e respeito”. Dayanna Louise é mulher trans e está à frente da unidade desde sua criação, em 2019.

Dayanna Louise – chefe da Unidade de Educação para Relações de Gênero e Sexualidades (UNERGS) da Secretaria de Educação de Pernambuco. Foto: Arquivo Pessoal

Infelizmente essa inclusão na escola não foi vivida em sua plenitude por Leka, que durante a adolescência teve dificuldades em ter seu nome social reconhecido por alguns professores e não se sentia à vontade para usar o banheiro feminino. “Tinha um banheiro, mais afastado na escola, que não ficava muito visível, então, sempre que possível, eu procurava usar este”, relata a manicure, que assim como tantas(os) são propositadamente invisibilizadas (os) diariamente, historicamente. Leka conta que começou sua transição enquanto cursava o primeiro ano do ensino fundamental, era por vezes provocada com termos pejorativos por outros estudantes: “me chamavam de ‘bichinha’, e quando eu ia falar com a coordenação da escola nada era feito, deixava-se pra lá como se minha reivindicação não fosse algo importante”. Ainda no primeiro ano Leka fazia um percurso sempre maior para chegar à escola para não ter que passar na rua da casa de seu pai e ser vista por ele, que não aceitava sua identidade de gênero. A partir do segundo ano passou a enfrentar a situação e um dia o pai a chamou e questionou suas roupas, ofendendo-a. A mãe, ao saber do ocorrido, não deixou por menos e imediatamente foi à casa do ex-marido defender a filha.

As violências sofridas pela população LGBTQIA+ tem sido uma constante preocupação da vereadora do Recife, Dani Portela (PSOL-PE). Ela relata as dificuldades para implementar políticas públicas que atendam essa população. Recentemente todas as suas emendas relacionadas ao tema foram rejeitadas , a exemplo da proposta de promover ações que visem à prevenção e combate a qualquer forma de violência contra as mulheres cisgênero e transgênero, da maior inserção da mulher no mercado de trabalho, além de reforço e ampliação de programas de fortalecimento sociopolítico e econômico voltados para as mulheres, sobretudo as negras, LBTs e com deficiência.

“Todas essas emendas foram rejeitadas pela ampla maioria da câmara, sob argumentos de que ‘pessoas não deveriam ser beneficiadas em políticas públicas pela sua opção sexual’, o que é um completo absurdo, pois mostra que os próprios representantes do povo não conseguem distinguir identidade de gênero de orientação sexual. Ainda houve resistência quanto aos termos cis , trans e LBTs (lésbicas, bissexuais, transexuais e travestis) sob a alegação de que não se sabiam os significados por não constar no dicionário nem no Google. Como é que pode uma casa legislativa, a casa do povo, negar emendas tão necessárias e importantes sob a alegação de que não sabe os significados?” questiona a vereadora, que juntamente com o vereador Ivan Moraes (PSOL-PE) e as vereadoras Liane Cirne (PT-PE) e Cida Pedrosa (PCdoB-PE) protocolaram no dia 09 de junho um requerimento solicitando que seja fixada no dia 28, Orgulho LGBTQIA+, na fachada da Câmara Municipal do Recife, bandeira ou faixa em homenagem à parada LGBTQIA+. O requerimento sequer foi incluído na ordem do dia e nem teve as 13 assinaturas necessárias para ser lido durante sessão. “Precisamos de mais colegas progressistas que entendam a importância de discutirmos gênero em todos os espaços, a fim de resguardar direitos e prevenir violências contra uma ampla população da nossa cidade” completa a vereadora.

No mesmo dia 09 de junho, data em que o requerimento foi protocolado e ignorado na Câmara de Vereadoras/es do Recife, a mulher trans Roberta Nascimento da Silva, que foi atacada no centro do Recife, teve 40% do seu corpo queimado, e estava internada desde o dia 24 de junho no Hospital da Restauração, não resistiu e morreu às 09h00 horas da manhã de falência múltipla dos órgãos, aos 32 anos. Também no dia 09 de junho a Jornalista, professora e pesquisadora do Núcleo de Design e Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (NDC/UFPE), Fabiana Moraes, que assina coluna no site The Intercept Brasil, acabava de concluir mais um texto da seção da plataforma, intitulado “Transexuais e travestis não são invisíveis: são apagadas” veiculada um dia antes da publicação desta matéria. No texto Fabiana expõe de forma contundente as questões pelas quais a população LGBTQIA+ é exterminada de forma explícita e proposital em nossa sociedade. Ao falar sobre a morte de três pessoas de identidade trans e travesti, entre elas Roberta, a jornalista traz um dado preocupante: 35 anos é a idade média de vida dessa população (dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais – ANTRA). No Brasil, a expectativa de vida, segundo dados do IBGE, é de 76 anos. Mais a frente a colunista traz um desafio: “Tente lembrar quantas travestis e transexuais idosas ou mesmo de meia idade você conhece ou vê circular por aí. Tente encontrar travestis e transexuais saudáveis, com empregos não estigmatizados, nos mercados, shoppings, praias, feiras-livres, consultórios médicos, escritórios de engenharia. Sim, elas existem. Mas a maioria é apagada no meio da caminhada.”

COMO O TEMA ESTÁ SENDO PAUTADO NA EDUCAÇÃO DE PERNAMBUCO

Andreika Asseker, secretária de Educação de Igarassu, afirma que um dos maiores desafios para a abordagem e reflexão sobre identidades de gênero nas escolas do município é a formação continuada para profissionais de ensino que as/os prepare para essas discussões, inclusive levando em consideração o território: “Igarassu é um município muito amplo, extenso, então as comunidades possuem especificidades econômicas e socioculturais, trazer uma formação que contemple esse olhar plural para professoras e professores é um dos grandes desafios que temos hoje”. Andreika também afirmou que a articulação entre a Secretaria de Educação e a Secretaria da Mulher, Direitos Humanos e Drogas do município possibilitará uma ampliação nos projetos para, inclusive, abarcar as pautas sobre identidades de gênero.

Sobre as ações da Unidade de Educação para as Relações de Gênero e Sexualidades – UNERGS, Dayanna Louise esclarece que há os grupos de pesquisa e práticas pedagógicas dentro das unidades escolares para o estudo das temáticas de gênero e sexualidade . “Hoje temos 26 escolas da rede que estão criando esses grupos, do sertão a recife e região metropolitana. Temos os observatórios de gênero e sexualidade nos Cases e Cenips, trazendo a dimensão socioeducativa” afirma. A coordenadora da unidade também acrescenta a campanha pelo nome social, com divulgação de 2.500 cartazes para uma rede de 1070 escolas. Segundo Dayanna, Pernambuco é o primeiro do nordeste e o quinto do Brasil em número de estudantes que utilizam o nome social.

A UNERGS também possui ações de formação sobre o tema para todo corpo educacional da rede estadual através dos projetos “Imô Xirê”, na perspectiva das rodas de saberes, o “Azougadas”, formação de longa duração e o “Andanças”, mostra de cinema sobre gênero e sexualidades que leva o cinema pernambucano voltado para essa temática às unidades de ensino de forma itinerante (por conta da pandemia tem sido realizado de forma virtual). Ano passado o Andanças lançou um curso de produção audiovisual para meninas. Embora reconheça os resultados positivos das ações, Dayanna traz um alerta importante: “ Se de um lado a política pela diversidade tem crescido, e diga-se de passagem com protagonismo do alunado, por outro lado há uma política também de recrudescimento, pautada no discurso de ódio, com distorções do tema e produção de fake news”.

Leka Rodrigues relembra que vivenciou muitas dessas distorções dentro e fora do ambiente escolar e lembra que na sua época não tinha suporte escolar que pudesse lhe assistir juntamente com outras pessoas de identidade trans e travesti. A manicure pontua um momento importante sobre seu processo de transição, quando o pai, Sílvio Lourenço, precisou ficar internado em um hospital devido à leucemia. Leka conta que ficou cuidando do mesmo durante toda a internação e reconstitui uma das cenas que não esquece: “Eu havia voltado de uma festa, estava toda brilhosa, toda montada, toda no jeans e fui direto pro hospital ficar com ele. Quando ele me viu com aquele brilho todo acabou até se sentindo melhor, me olhou e disse: ‘Tu não existe’”. Daí aos dias que se seguiram à sua internação, Silvio Lourenço foi se entendendo com a filha. “Ele me pediu perdão pelas atitudes preconceituosas que teve comigo no passado, e eu perdoei sim”. Dois dias depois seu pai foi entubado e em seguida viria a falecer, em setembro de 2011. A manicure segue sua vida e sua identidade de forma firme e assertiva e continua contando com o apoio da mãe, Ana Rodrigues.

Há 16 anos, enquanto Leka Rodrigues lutava para existir dentro e fora da escola, muitas (os) não conseguiram chegar até aqui, e não são poucas/os. Em menos de um mês três pessoas de identidade trans foram mortas no Recife (importante ressaltar que estamos falando aqui dos casos que foram notificados e conseguiram emergir da brutal invisibilidade imposta): em 18 de junho, Kalindra Selva, encontrada morta ao ser asfixiada dentro de casa, no dia 24 do mesmo mês, Roberta Nascimento da Silva teve 40% do seu corpo queimado e morreu dia 02. E enquanto essa matéria começava a ser produzida, no último dia 05, recebemos a notícia do assassinato de Crismilly Pérola, conhecida também por Bombom e PiuPiu. A necessidade de políticas afirmativas em prol das diversidades de gênero não é só um desafio, é sobretudo uma urgência permanente para a educação, como direito assegurado na constituição brasileira, e para a garantia de uma sociedade solidária, plural, justa e equitativa em todas as suas dimensões e para todas as existências.

Texto: Alcione Ferreira

Matéria originalmente publicada em: https://www.cendhec.org.br/single-post/identidade-de-g%C3%AAnero-e-educa%C3%A7%C3%A3o-pela-afirma%C3%A7%C3%A3o-da-diversidade-de-exist%C3%AAncias

Rildo Veras

Rildo Veras

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