Levi passa 16h30 em cima de uma bike fazendo entregas pelo Ifood para manter a casa ao lado da companheira
Crédito: Adriana Amâncio

por Adriana Amâncio

O desemprego é um das consequências mais marcantes da pandemia no Brasil.  De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), até maio de 2021, o país tinha 14,8 milhões de pessoas desempregadas. Entre os LGBTQIA+, a perda de renda, ao longo de 18 meses da atual crise sanitária, foi ainda mais significativa, afetando seis em cada dez pessoas, afirma um estudo do Coletivo Vote LGBT+ com a consultoria Box 1824. Para esse grupo, a pobreza afeta não só a sobrevivência, mas também a segurança, já que essas pessoas são obrigadas a retornarem a lares de onde foram expulsas por causa da orientação sexual e passam a ter que conviver com a homofobia e a violência.

A mulher trans Cristiane de Oliveira, de 42 anos, moradora da Imbiribeira, na zona sul do Recife, perdeu o emprego de educadora social na pandemia. Os shows que realizava em boates e bares, atividade complementar à renda, também paralisaram. O jeito foi voltar para a casa da mãe, onde travou uma batalha para iniciar a transição na adolescência. “Se você é gay, lésbica ou trans e ainda tem que voltar para a casa dos pais, porque não tem condições de se sustentar e não pode ajudar numa conta de luz, na feira, então, escuta gracinha. Muitas vezes, os nossos direitos são violados em casa mesmo”, explica Cristiane.

Cristiane é uma das beneficiadas com um cartão alimentação no valor de 150 reais, do Grupo Leões do Norte, organização não governamental de defesa dos direitos humanos e da cidadania das pessoas LGBTQIA+. A ação é em parceria com a ONG paulista Gerando Falcões, que tem o objetivo de minimizar os impactos da fome e da pobreza. Ao longo de dois meses, o cartão pode ser usado em compras de alimentos em redes de supermercado. Segundo Rildo Veras, sociólogo e diretor do grupo, a pandemia escancarou as desigualdades. “Para as pessoas LGBTQIA+, ficar em casa é preocupante. Para elas, o lar não é um lugar de aconchego, mas, sim, lugar onde ocorrem as primeiras violências”, enfatiza.

Independência e precariedade

Quem luta para não ter de recorrer à família, precisa fazer malabarismos. Priscila Araújo, de 38 anos, é uma mulher negra, lésbica, mãe de dois filhos, que mora no bairro da Várzea, zona oeste do Recife. Antes da pandemia, ela vivia da venda de lanches na porta de casa. O movimento ficou fraco e a renda caiu até que ela buscou ajuda junto a organizações não governamentais, e, hoje, recebe doações de cestas básicas. O seu próximo passo é encontrar um lugar para sair do aluguel, uma despesa insustentável.Os 375 reais que recebe do auxílio emergencial servem para botar comida na mesa. “Tô saindo do aluguel para morar em uma ocupação, num barraco de taipa, até ir organizando a situação. Os meus filhos vão junto comigo”, afirma Priscila, em meio a um suspiro profundo.

Priscila Araújo mulher lésbica se prepara para morar em uma ocupação pois pagar o aluguel se tornou insustentável
Priscila vai morar em um ocupação para tentar reorganizar a vida. Crédito: Adriana Amâncio

Levi Oliver se identifica como pessoa não binária e para manter o seu sustento e o da companheira, recorreu ao serviço de delivery. Ela trabalha no aplicativo ifood, com jornadas de até 16 horas e meia por dia, de domingo a domingo, em uma jornada que se inicia às 7h30 e vai até meia-noite. “Hoje mesmo, eu estou trabalhando com o ligamento do meu tornozelo rompido. Mas eu preciso, então tenho que vir, tenho que trabalhar, com dor ou sem dor, debaixo de sol ou chuva”, confessa. Apenas uma vez por mês, Levi é forçada a parar o trabalho:  durante o ciclo menstrual, quando sente “muita cólica, muita dor de cabeça e febre”, sintomas que se tornaram insuportáveis de lidar em cima de uma bike, sob um sol forte no trânsito do Recife.

Levi mora no bairro de Jordão Baixo e para chegar ao local de trabalho, o Shopping Recife, percorre quatro quilômetros de bicicleta logo cedo. Por mês, ela tem um lucro em torno de R$ 1.500, que mantém as despesas com aluguel e alimentação. A jornada exaustiva de Levi é vivenciada em meio a um ambiente predominantemente masculino, marcado por conversas “meio machistas e meio íntimas, que incomodam”, afirma.

Mesmo tendo uma estrutura de hub, um ponto de apoio com teto, local para sentar e banheiro, Levi precisa utilizar o banheiro do shopping ou dos locais onde realiza entregas, se as pessoas permitirem. Ela revela que o uso do banheiro do hub está proibido pela empresa, devido ao mau uso por parte de alguns entregadores. “É aquela coisa: por causa de um, todos pagam”, explica. Além disso, as refeições são feitas no meio da rua, na calçada mais próxima.

A plataforma não oferece seguro de vida nem garantias para o veículo dos entregadores. Levi conta apenas com a sorte para  enfrentar os riscos do trânsito do Recife. Em dois anos de trabalho, a entregadora conta que sofreu três acidentes, que felizmente não deixaram sequelas graves. Levi faz planos para ter um pouco mais de segurança e aumentar os lucros, pois, “bicicleta toca mais, moto toca menos” , ela assegura. Para realizar esse sonho, lançou uma vaquinha online para, inicialmente, tirar a carteira de habilitação. O passo seguinte é comprar uma moto e, dentre outros benefícios, dar um descanso ao ligamento do tornozelo, rompido três vezes nos acidentes.

Emprego e renda: questões essenciais

O acesso ao mercado de trabalho é fundamental para reduzir a vulnerabilidade das pessoas LGBTQIA+. Quanto mais à margem da sociedade, maior o risco de vida esse público corre. Segundo Rildo, a desigualdade possui níveis e o último estágio é a situação de rua. “O que ocorreu com a mulher trans Roberta, queimada viva no centro do Recife, é a consequência da vulnerabilidade da população LGBTQIA+. Ela estava em um grau de pobreza, que ameaça diretamente a vida”, pontua.

O mercado de trabalho formal ainda discrimina as pessoas pela sua orientação sexual e identidade de gênero. Além do mais, o Estado  não tem sensibilidade para pensar políticas adequadas à realidade desse público. “Certa vez, o governo estadual propôs um curso de Excel para mulheres trans nas terças-feiras, às 9h, na Conde da Boa Vista. Essas mulheres, muitas vezes, encerram uma madrugada de trabalho cansadas, com fome e nunca vão conseguir estar na Conde da Boa Vista, neste horário. Quem pensa esta política, não conhece a realidade”, critica Rildo Veras.

Grupo de pessoas LGBTQIA+
Grupo Leões do Norte vai realizar cursos. Crédito: Adriana Amâncio

Em relação às cotas para o mercado de trabalho, o público LGBTQIA+ enfrenta desafios no debate junto ao poder público, que alega ser possível atender a população trans, mas não as pessoas homossexuais. Ele explica que as pessoas trans possuem um documento que serve como prova da sua condição, porém, uma pessoa homossexual não pode comprovar. “É preciso que o Estado crie políticas de inclusão para as pessoas LGBTQIA+ e garanta a permanência dessas ações. A escola é um lugar hostil, que não acolhe, por isso ocorre a evasão escolar”, finaliza Rildo.

Rildo explica que, para criar oportunidades de geração de renda, empoderamento e elevação da autoestima das pessoas LGBTQIA+, o Leões do Norte, em parceria com o Fundo Elas e a Rede LGBT do Interior de Pernambuco, irá realizar ao longo do mês de setembro cursos profissionalizantes gratuitos em cidades polos do estado. No município de Salgueiro, região do Sertão Central, será realizado um curso de corte e costura. No Sertão de São Francisco, o município de Petrolina recebe o curso de maquiagem. Já na Mata Sul, no município de Palmares, o curso será de doces e salgados.