Candidatas trans e travestis projetam bancada no Congresso para legislar sobre direitos

Se eleitas, atuações no Parlamento tentarão romper com dependência da judicialização para cidadania LGBTQIA+

Alex Mirkhan
Brasília (DF) |

People take part in the Porto Alegre Free Parade during the month of awareness and support to the LGBTQIA+ cause in Porto Alegre, Brazil on June 12, 2022. (Photo by SILVIO AVILA / AFP)

Parada há 7 anos no Supremo Tribunal Federal (STF), o debate sobre o uso de banheiros públicos por pessoas trans é um caso simbólico dos constrangimentos legais que ainda afetam a população LGBTQIA+, de modo geral, no Brasil. Para tornar lei direitos já adquiridos através da Justiça, candidatas trans e travestis lutam por vagas inéditas no Congresso Nacional nas eleições deste ano.

Muitos desses nomes se credenciam para a disputa pelo retrospecto de votações expressivas nas últimas eleições estaduais e municipais, em 2018 e 2020. Se eleitas, algumas candidatas ouvidas pelo Brasil de Fato, além de abrirem as portas para a diversidade no Parlamento, também terão a oportunidade de consolidar lutas históricas que encampam mesmo antes de entrarem para a política formal, pelo simples fato de existirem.

Candidata a deputada federal, Robeyoncé Lima (PSOL-PE) é travesti, negra e advogada. Eleita há dois anos para um mandato coletivo na Assembléia Legislativa de Pernambuco, ela se viu motivada a ampliar a luta contra a insegurança jurídica que aflige especialmente a parcela mais vulnerável dessa população, que em 2020 foi estimada pelo Banco Mundial em 2% do total de brasileiros.

“A gente não tem a cidadania LGBTQIA+ na legislação, na lei, no Congresso Nacional. Os projetos que têm estão engavetados. É justamente por essa ausência de representatividade que não temos avanços no Legislativo. Por isso, precisamos constranger o Judiciário para agir”, comenta a deputada, que também ressalta o risco jurídico constante: “Essa cidadania judicializada não tem a mesma segurança do que uma cidadania legislada, porque o entendimento pode mudar daqui 10 anos e haver retrocessos”.

Cidadania judicializada significa direito conquistado por decisões legais isoladas, não por meio de leis aprovadas. Nos últimos anos, instâncias superiores da Justiça, como o STF e o STJ (Superior Tribunal de Justiça), decidiram a favor de uma série de reivindicações históricas, acompanhando tratados internacionais. Por exemplo, o reconhecimento da união homoafetiva, a ratificação em cartório de nome e gênero e o enquadramento de mulheres trans na Lei Maria da Penha para proteção contra agressores, decisão tomada pela sexta turma do STJ em abril deste ano.

As medidas são comemoradas. Afinal, o Brasil é – pelo décimo terceiro ano seguido – o país que mais mata pessoas trans e travestis no mundo, segundo levantamento global da Transgender Europe (TGEU). A falta de respaldo por parte do poder legislativo é um problema que as candidaturas LGBTQIA+ pretendem enfrentar, mas sem perder de vista o perfil conservador e até preconceituoso comum à boa parte dos políticos da Câmara dos Deputados.

“A gente não pode se iludir pensando que vamos ter muito poder com três pessoas trans, gays, lésbicas. Precisamos ter a dimensão de que aquela Casa tem 513 deputados. Mas eu acho que a gente consegue atuar como uma frente. Seria importante estarmos dentro de uma Comissão de Constituição e Justiça, que é a mais importante”, projeta Natasha Ferreira (PSOL-RS), vereadora de Porto Alegre que também briga por um assento na Câmara.

Natasha, que é defensora da adoção de cotas para pessoas trans e travestis no mercado de trabalho, comemora o reconhecimento inclusive por pessoas héteronormativas e cristãs pela atuação e coragem de “bancadas da diversidade” país a fora na atuação em temas macroeconômicos e estruturais “fora da caixa” da militância. “A gente tem uma população gigante em volta, mas não só LGBTQIA+, são famílias, estudantes, pessoas da área da saúde que viram que as nossas defesas são muito comuns. [Me falam:] ‘Essa aí não vai ter como recuar dentro de um Congresso, porque se ela recuar, vai recuar pra onde?’”, argumenta.

Campanha pede: “Libera o meu xixi!”

Apesar dos avanços, nem tudo são flores na relação com o Supremo Tribunal Federal. Há sete anos, o ministro Luiz Fux pediu vistas e até hoje mantém parado o julgamento sobre uma decisão que pode permitir que pessoas trans e travestis usem banheiros públicos de acordo com o gênero com que se identificam.

O caso concreto trata do direito de indenização a uma transexual que, em 2015, foi impedida de usar o banheiro feminino em um shopping de Florianópolis. Em 2019, a travesti Lanna Hellen passou por situação semelhante em um shopping, dessa vez em Maceió, e chegou a ser arrastada por seguranças até um depósito, onde permaneceu antes de ir embora dentro de uma viatura policial. Um deles acabou condenado pela justiça alagoana pelo crime de transfobia, em uma das primeiras decisões desse tipo relacionadas ao uso de banheiro.

A ativista Bruna Benevides, primeira mulher trans na Marinha, onde permanece na ativa graças à uma vitória na Justiça, relata sua sensação sempre que precisa recorrer a um banheiro público. “Eu morro de medo, tremo, tenho taquicardia, minha pressão sempre se altera. Eu resisto ao máximo, exatamente porque eu sei que a qualquer momento eu posso ser constrangida ao estar entrando para fazer uma necessidade fisiológica”, lamenta.

Bruna também é secretária de articulação política da Antra (Associação Nacional dos Travestis e Transexuais), que desde 2015 promove uma série de campanhas sobre o tema e voltou ao noticiário recentemente com o resgate do mote “Libera meu xixi!”. Ela comemora o despertar para o tema, mas se diz preocupada com a demora para o fim do julgamento no STF.

“Ao não pautar, julgar e encerrar esse julgamento, a gente está permitindo de alguma forma que pessoas trans continuem sendo humilhadas, violadas e violentadas de diversas formas, simbólicas e físicas, também do uso de banheiros ou espaços segregados por gênero”, protesta.

Para Robeyoncé Lima, há uma visão estereotipada na sociedade, com grande contribuição das organizações religiosas, e apegada ao sistema binário. “Essa discussão de gênero no banheiro é uma coisa que a gente, ainda hoje em pleno século 21, está tentando superar quando em países da Europa e nos Estados Unidos, os mais de 26 gêneros reconhecidos podem usar o mesmo banheiro com as cabines individualizadas.”

É por esse mesmo caminho que as soluções deveriam passar, na avaliação de Natasha, que se reconhece como uma voz divergente sobre esse tema dentro do próprio político por enxergar uma “falsa polêmica”. Ela teme que políticas públicas mal feitas e desacompanhadas de campanhas sérias de educação possam trazer prejuízos à imagem das próprias mulheres trans e travestis. “Acho que banheiros que tenham agentes do Estado tomando conta, câmeras para registrar a entrada das pessoas e a cabine individual separada apenas escrita ‘banheiro’ já seria muito positivo para encerrar a polêmica”, opina.

Candidatas prometem discurso afinado, mesmo com discordâncias

Entre as candidaturas trans de maior projeção estão as de Erika Hilton (PSOL-SP), que foi a vereadora mulher mais votada em 2020, a de Duda Salabert (PDT-MG), vereadora mais votada de Belo Horizonte, e da midiática ex-BBB Ariadna Arantes, que anunciou em março a sua filiação ao PSB, junto com Geraldo Alckmin, e concorre em São Paulo.

De acordo com levantamento da Antra, 294 travestis, mulheres transexuais e homens trans concorreram a algum cargo eletivo em 2020, alcançando a eleição de 30 candidaturas de espectros políticos variados. Mesmo assim, as siglas à esquerda se fizeram mais presentes, emplacando 16 nomes, seguida pelo chamado “centro”, que conseguiu 11 cadeiras e, finalmente, pela direita, que elegeu três pessoas, com destaque para o vereador Thammy Miranda (PL-SP).

Embora possam surgir divergências pelo caminho, em uma eventual eleição numerosa para a próxima legislatura, o discurso é de unidade. Robeyoncé sabe, por exemplo, que muitos parlamentares não vão gostar de conviver com uma trans, negra e nordestina nos corredores e plenários. Por isso, já fala em criar uma rede de proteção contra virtuais ataques verbais e físicos.

“Do mesmo jeito que as bancadas do boi, da bala e da bíblia têm espaço, a gente também vai ter. Do mesmo jeito que eles vão estar lá fazendo falas conservadoras, a gente também vai construir a nossa narrativa na primeira bancada travesti preta do Congresso Nacional”, exalta.

Natasha também torce para que mais de uma candidata do seu campo se eleja, “se não, será um Deus nos acuda”. Ela traça metas objetivas para os próximos anos, como a recriação do ministério dos Direitos Humanos e a retomada de políticas de combate à insegurança alimentar. “O povo que trabalha, vive bem e ganha bem tem menos chance de semear o ódio. Não podemos permitir que uma casa LGBT ou um ambulatório trans sejam vistos como privilégios, enquanto temos crise, fome e miséria”, salienta a vereadora.

A sonhada renovação da democracia, na avaliação de Beyoncé, somente será alcançada se estiver pautada na igualdade social, racial e de gênero, uma análise que, segundo ela, ainda precisa ser aprofundada dentro da própria esquerda. “Quando dizem que ‘a prioridade é derrubar Bolsonaro e depois a gente discute sobre raça, gênero e luta de classes’, isso está sendo uma visão errônea de como vamos fazer essa transformação social”, finaliza.

Edição: Rodrigo Durão Coelho

Matéria originalmente publicada em: https://www.brasildefato.com.br/2022/08/13/candidatas-trans-e-travestis-projetam-bancada-no-congresso-para-legislar-sobre-direitos

 

Rildo Veras

Rildo Veras

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