A transexual que dá treinos de futebol na periferia de Recife
Matéria originalmente publicada em: https://www.vice.com/pt/article/nzjy8m/gretchen-do-pacheco
FOTO: ADOLFO SONTERIA
Gretchen, a mais conhecida transexual do bairro do Pacheco, na periferia de Jaboatão dos Guararapes, em Recife, está sentada na porta de casa enquanto confere, distraída, suas unhas vermelhas e gastas. O cabelo preso por muitos grampos e o vestido discreto, bem abaixo do joelho e sem decote, escondem o jogo. Até parece uma senhora recatada.
Só parece. Não demora muito para que ela se revele uma estrela local. Expansiva e com gestos fortes, Gretchen é assunto por onde passa. É, de longe, a pessoa mais conhecida das redondezas. O sucesso se deve ao trabalho que realiza nas beiradas dos campos de futebol. É ela quem treina, de terça à sexta-feira, os aspirantes a jogadores na escolinha de futebol Deus É Fiel, a única da comunidade (e que nada tem a ver com a igreja) onde mora há 30 anos.
Não pode falar palavrão, zoar, ir mal na escola, usar droga, beber ou fumar. Se Gretchen pegar, ela corta do time. Exigente, a treinadora é muito respeitada pelos alunos e por seus pais. “Eu conquisto esses meninos. Às vezes prometo que quem fizer o primeiro gol eu dou dez real. Mas se tem ganância eu não dou nada não”, conta. Quando tem jogo, Gretchen sempre faz um corre pela comunidade para conseguir, por mínimo que seja, um conforto aos pequenos atletas. “Corro atrás, peço duas guaranás pros meninos, mas só dou quando ganha, quando perde vão tudo embora. Já deixo pro próximo.”
A trajetória futebolística de Gretchen, batizada há 51 anos como Nerivaldo Eretiano da Silva, começou cedo. Aos 14, era goleiro do time juvenil do Santa Cruz, clube com uma das maiores torcidas do Pernambuco. Nessa fase começou a escalar as equipes do próprio clube e deu início a sua carreira como técnico(a).
Foi nessa época também que conheceu os prazeres da carne. A ligação dela com o futebol é tão íntima que até sua iniciação sexual tem a ver com o esporte. “Perdi minha virgindade numa aposta para um jogo Santa Cruz e Sport. Eu tive que sair com o menino. Ele era Sport e eu Santa Cruz”, conta, com tom malicioso. Se o Santinha ganhasse o clássico, a treinadora ia faturar uma quantia em dinheiro ou uma camisa oficial. Caso perdesse – o que ocorreu –, ela teria que se relacionar com o outro apostador.Segundo Gretchen, foi uma das únicas derrotas do tricolor do Arruda que não a incomodou. “No dia seguinte ao jogo ele já tava me procurando batendo na porta pra ter relação. Eu me perdi por causa de jogo. O menino era bonitão todo, eu ia perder, é?”, diz. “Foi ótimo, mas depois casou e foi-se embora.”
Contrariando as estatísticas da região, a transexual não fez fama deitando na cama — ou de pé nos matos — e muito menos dando aquele tapa no cabelo da galera. “Nunca fiz programa, não gosto não. Tá doido, elas fazem ali na ponte (perto da entrada do bairro) e é 5, 10 reais. É chupada completa. Eu não vou ficar arriscando a minha vida por isso não. Mês passado mesmo uma menina foi espancada ali, quase mataram ela só dando porrada na cabeça. Três caras bateram nela.”
O respeito da boleiragem
À beira do campo, Gretchen separa os de verde dos de amarelo. Do lado esquerdo estão os meninos entre 13 e 14 anos. Do lado direito uma equipe visivelmente maior, mas todos abaixo de 17 anos. Entre eles está John Lennon de Lima Cabral, de 15 anos. O atacante é rápido e habilidoso, principalmente na perna direita. Seu ponto fraco, o de muitos em campo, inclusive, é a baixa estatura. Ele revela gratidão pela treinadora. “Aprendi muitas coisas com ela. Eu era preguiçoso, mas ela me incentivou muito. Treinei físico, finalizações e melhorei muito”. Ele é um dos que a técnica mais acredita no potencial. “John Lennon sabe jogar bola”, ela diz.
Outro que vem se destacando nos treinos e jogos da Escolinha Deus é Fiel é o volante Carlos Eduardo Barbosa, também de 15 anos. “Tudo sobre futebol eu aprendi com ela. Sempre treinamos tática, técnica, individualismo”, diz o atleta que é um pouco mais alto que a média e com ótima qualidade na marcação e no primeiro passe. “Todo mundo tem que ter uma chance e eu acho que tenho chance de treinar e de ser jogador”.
Ser jogador profissional é a expectativa de todos ali. Quem está mais próximo dessa realidade é Wellyson Luiz Silva da Hora, também de 15 anos. O lateral-esquerdo passou uma temporada de treinos nas categorias de base do Atlético-MG, em Belo Horizonte. Hoje ele aguarda uma resposta do clube para saber se ficará por lá em definitivo. “Fiz uns seis treinos e fui bem nos seis, fiz gol, joguei direito”. Assim como seus amigos, Wellyson deve muito do que sabe à treinadora. “Ela é uma guerreira e nunca deixou a gente de lado. Está sempre com a gente.”
O grande sonho de Gretchen – além de colocar prótese de silicone nos seios – é ter condições para comandar seus atletas. Falta tudo: uniforme, vestiário, água, ataduras, bola. Com dificuldade na documentação e na busca por recursos para a comunidade e a escolinha, não se tem muito mais do que o campo com mais areia do que grama emprestado pela Polícia Militar. Os jogadores, com equipamento rústico, apesar das chuteiras caras, dividem o espaço com diversos animais que pastam por ali.
Gretchen é uma atração local, isso é claro. É para ela que os holofotes acendem no bairro do Pacheco. E a comunidade já percebeu seu poder. O único porém é que sua competência técnica não entra na questão. É o caso de José Roberto Ferreira de Lima, o Birungueta, o homem que vai assumir a administração da escolinha de futebol. Sobre a capacidade da treinadora ele é direto. “Saber ela não sabe, porque só sabe quem estuda. Mas ela traz a mídia aqui, já foi ao [Programa do] Ratinho”.
Assim como a escolinha, a treinadora também vive a duras penas. Ela ganha 77 reais por mês do Bolsa Família e mora de favor na casa de uma amiga, que mantém um salão de cabelereiro na parte da frente. “Ela não gosta de futebol, ela gosta só da seleção brasileira pra ver aqueles gostosos”, diz. “O Kaká.”
Mulher ou frango?
Embora fale com segurança que não viveu cenas de homofobia ou transfobia à beira do campo, Gretchen conta que sempre nota a curiosidade da torcida por onde passa. “Eu ouvia as crianças perguntarem: ‘papai, isso é uma mulher ou um frango (no Pernambuco e em quase todo o nordeste brasileiro a expressão se refere a gays)? Que danado é isso?’ Eu ficava calada só escutando e comandando meu time. Menino é curioso, por isso eu não dou liberdade a menino”, diz.
Em casa a história era diferente, bem mais agressiva. Ainda que recebesse apoio da mãe, sofria com severa repressão paterna. “Meu pai era chato. Quando eu via ele, me escondia. Ele dizia: ‘ se eu pegar você com aqueles frangos meto bala em tudinho'”.
A revolta, porém, não mudou a vida de Gretchen. O apelido, inspirado na cantora do mesmo nome, veio na adolescência. O corpo de hoje – feminino, com peitos e ancas avantajadas – é um processo recente. Primeiro tomou injeções de hormônios para, como ela mesmo diz, “os peitos pularem”; depois aplicou silicone líquido na bunda com a doação de uma amiga. “Custou 500 reais. Primeiro vem a anestesia com uma agulha fina e depois uma agulha grossa, de cavalo mesmo. Eles enfiam cinco agulhas e vão enchendo. Quer ver?”, ela diz, antes de levantar o curto vestido cinza e exibir a calcinha lilás com escrita Boka Loka.
“Se eu tivesse dinheiro colocava silicone no peito, mas custa 7 mil reais”, ela diz. “Com esses dois peitinhos eu ainda me amostro, imagina de tivesse prótese? Toda travesti tem o sonho de ter peito.” Já sobre cortar as bolas e o pau, Gretchen é definitiva. “Eu não sou mesmo mulher e não vou ser aquela que quer ser mulher.”
Atualmente ela tenta, com o auxílio dos atletas, juntar uma grana para participar de um torneio em Caruaru, há pouco mais de 100 quilômetros da capital. Se conseguirem todo o dinheiro, alguns milhares de reais, eles viajam. Se não rolar, essa verba vai servir pra comprar materiais esportivos.
A impressão que dá é que, ainda que o time vá e vença o torneio em Caruaru, a vida na comunidade seguirá do mesmo jeito: sem ajuda, sem amparo, mas com muito esforço e determinação. A prefeitura de Jaboatão parece ter se esquecido do bairro do Pacheco, Gretchen não.